- Renata Innecco Bittencourt de Carvalho
RESUMO
O envelhecimento humano envolve o conflito entre o corpo, que envelhece, e o inconsciente, que permanece atemporal. Esse descompasso gera lutos psíquicos e exige readaptação. A exclusão social dos idosos agrava esses desafios, destacando a importância de políticas públicas como a Lei 14.878/2024, voltada ao cuidado integral de pessoas com Alzheimer e outras demências, essencial para garantir dignidade e qualidade de vida na velhice.
Palavras-chave: Envelhecimento. Saúde mental. Políticas públicas.
O envelhecimento humano é um processo inevitável, caracterizado por mudanças físicas, emocionais e sociais, que impactam tanto os indivíduos quanto as sociedades em que vivem. No Brasil, o envelhecimento populacional é um fenômeno acelerado: estima-se que, até 2030, cerca de 41,5 milhões de brasileiros terão 60 anos ou mais, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Este cenário apresenta desafios profundos, especialmente no campo da saúde mental, que exige respostas integradas e políticas públicas eficazes. A Política Nacional de Cuidado Integral às Pessoas com Doença de Alzheimer e Outras Demências (Lei 14.878/2024) é um exemplo claro da necessidade de implementar ações voltadas ao cuidado integral dos idosos.
A psicanálise oferece contribuições valiosas para entender os desafios do envelhecimento. Sigmund Freud afirmou que “os processos do sistema inconsciente são atemporais; isto é, não são ordenados temporalmente, não são alterados pela passagem do tempo” (FREUD, 1915). Essa característica do inconsciente gera um conflito inerente ao envelhecimento: enquanto o corpo muda, envelhecendo e mostrando os efeitos do tempo, o inconsciente mantém sua atemporalidade, preservando desejos, aspirações e imagens que podem já não corresponder à realidade física. Mucida enfatiza essa dualidade ao dizer que “há um sujeito que não envelhece malgrado a velhice. Há traços identificados precocemente do Outro que nos acompanham e alguns não se modificam com a passagem do tempo” (MUCIDA, 2010). Esse descompasso cria uma tensão interna entre a imagem idealizada do eu, construída ao longo da vida, e o corpo que agora se transforma, marcando um momento crítico de luto e readaptação.
Freud, em Luto e Melancolia, descreve o luto como um processo de trabalho psíquico necessário para superar perdas significativas. Aplicando essa perspectiva ao envelhecimento, pode-se dizer que há um luto relacionado ao corpo que se teve no passado e que já não está disponível. O envelhecimento do corpo, com suas limitações e mudanças visíveis, obriga o indivíduo a confrontar essa perda e a se readaptar à nova realidade física. Como Freud aponta, “o luto é, por assim dizer, o preço que pagamos pela capacidade de amar” (FREUD, 1917). No caso do envelhecimento, esse luto não é apenas pela perda do corpo jovem e funcional, mas também pelas mudanças na relação com o mundo externo, que frequentemente deixa de reconhecer e valorizar a pessoa idosa.
Simone de Beauvoir aborda essa exclusão social em sua obra “Velhice”, criticando a forma como a sociedade moderna marginaliza os idosos. Para ela, “a sociedade moderna é competitiva, produtiva, machista, valorizadora da funcionalidade e beleza dos corpos, e, portanto, responsável pelo afastamento dos mais velhos do mercado de trabalho” (NASCIMENTO, 2021). Esse isolamento social exacerba o sofrimento psíquico e dificulta o trabalho de luto e adaptação necessário para viver plenamente o envelhecimento.
Nesse contexto, políticas públicas como a Política Nacional de Cuidado Integral às Pessoas com Doença de Alzheimer e Outras Demências tornam-se indispensáveis. Sancionada em junho de 2024, a política busca “incentivar a capacitação de profissionais, o apoio à pesquisa de novos tratamentos e a elaboração de um plano de ação pelo poder público, instituições de pesquisa e sociedade civil” (BRASIL, 2024). Apesar de sua relevância, sua implementação prática enfrenta desafios como a necessidade de recursos financeiros e de maior articulação entre os diferentes setores da sociedade. A efetivação dessa política é essencial para apoiar os idosos em suas demandas, incluindo o cuidado especializado para lidar com doenças neurodegenerativas como o Alzheimer.
Doenças como o Alzheimer intensificam os desafios do envelhecimento, destacando a importância de políticas integradas e individualizadas. Angela Mucida ressalta que “as mudanças corporais relativas à faixa etária não determinam o sujeito, tendo em vista sua singularidade e o modo como cada um vivencia suas experiências” (MUCIDA, 2010). Essa visão é essencial para a formulação de políticas públicas que reconheçam e respeitem as particularidades de cada idoso, oferecendo suporte psicológico, médico e social.
A psicanálise, nesse cenário, desempenha um papel crucial. Baldin e Machado afirmam que “a clínica psicanalítica com velhos é possível quando pautada na retomada à condição desejante do sujeito. Pela presença e escuta, o analista oferece ao velho um espaço de construção e reconstrução, de apropriação de sua própria história” (BALDIN; MACHADO, 2023). Esse espaço terapêutico pode ajudar o idoso a elaborar o luto pelo corpo que não mais possui, permitindo-lhe encontrar significado em sua nova condição.
Além da dimensão psicanalítica, os mitos antigos oferecem uma reflexão simbólica sobre o envelhecimento e a condição humana. O mito de Tithonus, que recebeu a imortalidade da deusa Eos, mas não a juventude eterna, simboliza os dilemas da longevidade sem qualidade de vida. Tornado frágil e angustiado pelo passar dos anos, Tithonus exemplifica o que acontece quando a sociedade negligencia o suporte necessário para que os indivíduos envelheçam com dignidade.
Portanto, o envelhecimento é mais do que um processo biológico; ele envolve uma adaptação emocional, social e psíquica que requer suporte integral. A implementação de políticas públicas como a Política Nacional de Cuidado Integral às Pessoas com Doença de Alzheimer e Outras Demências é um passo fundamental para garantir que os idosos no Brasil tenham uma velhice digna, marcada não apenas pela longevidade, mas também pela qualidade de vida. Esse compromisso com o cuidado é essencial para que a sociedade enfrente o desafio de acolher e valorizar aqueles que trazem em si a sabedoria do tempo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, M. C. et al. Doenças crônicas e envelhecimento: um panorama no Brasil. Revista Brasileira de Geriatria e Gerontologia, v. 16, n. 3, p. 7-23, 2013.
BALDIN, Talita; MACHADO, Dósila. O sujeito da psicanálise não envelhece, mas o corpo sim: a cura enquanto cuidado. In: Envelhecimento Humano e Contemporaneidade: tópicos atuais em pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Científica Digital, 2023.
BEAUVOIR, Simone de. A velhice. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
BRASIL. Estatuto do Idoso: Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003. Brasília: Senado Federal, 2004.
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FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia. In: Edição standart brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
MUCIDA, Ângela. Identificação e envelhecimento: do espelho que não se quebra e outros espelhos. Revista Brasileira de Psicanálise, v. 28, n. 2, p. 29-45, 2010.
MUCIDA, Ângela. O sujeito não envelhece: Psicanálise e velhice. Belo. Horizonte: Autêntica, 2006
NASCIMENTO, Marcelo de Maio. A velhice segundo Simone de Beauvoir: considerações para uma gerontologia do envelhecimento. Revista Corpoconsciência, v. 25, n. 3, p. 237-250, 2021.
YASSUDA, M. S. et al. Aspectos psicológicos do envelhecimento humano. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 19, n. 3, p. 471-472, 2006.